Os últimos meses de trabalho enquanto arquiteto têm sido, acima de tudo, cheios. Cheios de muito e diferente. Muitos desafios, muitos problemas, muita experimentação, muitas conversas, muitas discussões, muita confusão. Muitos riscos, maus desenhos (alguns importantes), muitas tentativas falhadas, alguma frustração, muita aprendizagem…
Estes altos e baixos, típicos do processo criativo, fazem-me repensar a minha posição nos diferentes desafios e, mais difícil, refletir na minha capacidade para os resolver. A reflexão é sempre uma nuvem esbatida. Falta-me distância face ao problema e a mim próprio de modo a conseguir ver o todo com a clareza que constantemente sobrevalorizo. Apesar de uma nuvem indefinida, de fronteiras manchadas, o percurso introspectivo conclui-se geralmente numa nota mais ou menos positiva de confiança para comigo e para com a solução (ainda desconhecida). Cada vez tenho mais certeza que esta confiança advém sobretudo de uma coisa: o processo de trabalho.
O processo de trabalho, principalmente em áreas criativas, é profundamente pessoal. Pessoal e complexo. Admito que esta seja uma forma relativamente óbvia e, quiçá inútil, de o descrever, mas neste momento fico-me por aqui. (Escusado é dizer que este será assunto a ser partilhado em breve.)
Com esta introdução de um texto que não é este volto à ideia inicial. Acontece que partilhar o meu processo criativo, como ele é hoje, é como expor sobre uma árvore sem lhe mencionar as raízes. Este processo é o resultado da minha evolução pessoal mas está diretamente ligado ao meu percurso académico, tema do qual partilho algumas ideias principais nestas breves exposições.
Um caminho intenso. De curvas cegas, de vagueio ingênuo de quem pensava saber o destino final. Com o tempo, a angústia desmedida tornou-se um copo de resiliência e orgulho na superação. Recordo com um sorriso o dramatismo da esferovite mal cortada. Introduzo o processo de trabalho com o seu processo de criação.
Lembro-me.
Cheguei como um animal ao matadouro (bem que parecia) num dia de Setembro, há já uns sete anos… Nervoso e assustado. Portanto, como qualquer um dos que pisava aquele cubo de granito no plano entre as torres. Não sei qual dos dois se aproximou do que já lá estava, apenas recordo o lado a lado. “Olá, sou o Miguel.”
É fantástico como o ser humano consegue retirar conforto das coisas mais simples quando vê nele instalada uma crise generalizada. Lembro-me de o sentir naquelas palavras. O Miguel diz-me hoje “olá” como naquele dia e isso diz muito sobre nós. Como tudo muda e no entanto tudo se mantém igual. A voz amiga tornou-se um amigo, que estimo. Hoje.
O conforto durou muito pouco. Pouco depois estávamos uns quarenta sentados em bancos de madeira e ferro cinzento. Numa sala feita de paredes brancas, a luz chegava sobretudo de cima. Lado a lado. Tarefa: “Desenhem esta cadeira!”.
40 minutos. Agora!
40 minutos, 40 pessoas. Retiraram-se as folhas A4 e os lápis como se fossem espingardas e balas em tempo de guerra. Nem um pio (exceto um ou outro comentário nervoso produzido pelo medo do desconhecido). Moldadas por doze anos de números como objetivo. Os números que nos identificavam e posicionaram no grupo. Sempre na busca pelo número mais alto. É triste ser só um número no nosso próprio interior. Estava naquela sala por um número. Por ser um superior a muitos outros. Estávamos todos. (Feliz por há muito não ser motivo de orgulho.) Todos números.
Nos 5 meses seguintes fui derrotado em todas as frentes. Impotente perante a realidade de não saber nada e arrogante para não o reconhecer. Uma arrogância construída pelo medo de não ser bom o suficiente. Não terminava um desenho no tempo que me era dado, não encontrava solução para a cidade incumbida de criar. Mas o pior era não saber a data da construção das grandes pirâmides. Antes, isso fazia bem…
Mas janeiro trazia uma oportunidade para inverter a situação: os testes de fim de semestre, os primeiros enquanto estudante de arquitetura. “Assim sei funcionar!” Tinha-o feito desde que me lembrava, e bem. Fi-los.
No mês seguinte, recebi notícias do primeiro resultado fantástico (aquele de que mais me orgulho). Na primeira fila, como um menino bem comportado, uma figura de escuro aproximou-se e estacou na lateral da mesa junto a mim (o primeiro mestre). “Para a próxima, veja se estuda menos.” – disse-me. Atirou a folha para o tampo.
No cabeçalho a vermelho: oito e meio.
(de 20)
“-Corres um grande risco ao encorajá-los a serem artistas, John. Quando eles se aperceberem que não são Rembrandts, Shakespeares ou Mozarts, vão odiar-te por isso.
-Não estamos a falar de artistas George, estamos a falar de pensadores livres.
-Pensadores livres aos dezassete anos?”
Diálogo entre Mcallister (Leon Pownall) e Keating (Robin Williams).
Sociedade dos Poetas Mortos, filme de Peter Weir, 1990.
The last few months of work as an architect have been, above all, full. Full of plenty and different. Many challenges, many problems, much experimentation, many conversations, many discussions, much confusion. Many scrumbles, bad drawings (some important), many failed attempts, some frustration, a lot of learning….
These ups and downs, typical of the creative process, make me rethink my position in the different challenges and, more difficult, reflect on my ability to solve them. Reflection is always a blurred cloud. I lack the distance from the problem and from myself to be able to see the whole with the clarity that I constantly overestimate. In spite of a blurred cloud, with unclear boundaries, the introspective journey usually ends on a more or less positive note of confidence in myself and in the (as yet unknown) solution. I am increasingly certain that this confidence comes from one thing above all: my work process.
The work process, especially in creative fields, is deeply personal. Personal and complex. I admit that this is a relatively obvious and perhaps useless way of describing it, but I’ll rest here for now. (Needless to say, this will be a subject to be shared soon).
With this introduction of a text that is not this one, I return to the initial idea. It turns out that sharing my creative process, as it is today, is like speaking about a tree without mentioning its roots. This process is the result of my personal evolution but it is directly linked to my academic journey, a theme of which I share some main ideas in these pages.
An intense path. Of blind curves, of naive wandering from someone who thought he knew the final destination. Over time, the unreasonable anguish became a cup of resilience and pride in the achievement. I recall with a smile the drama of poorly cut styrofoam. I introduce my work process with its creation process.
I arrived like an animal at the slaughterhouse (I thought so) on a September day, about seven years ago… Nervous and scared. So, like any of the people who stepped on that granite cube on the flat between the towers (of Faculty of Architecture of Oporto’s University). I don’t know which of the two approached the one who was already there, I just remember the side by side. “Hi, I’m Miguel.”
It’s amazing how human beings can draw comfort from the simplest things when they see a generalised crisis in them. I remember feeling it in those words. Miguel says “hello” to me today as he did that day and that says a lot about us. How everything changes and yet everything stays the same. The friendly voice has become a friend, whom I cherish. Today.
That comfort was short-lived. Soon there were about forty of us sitting on grey timber and iron benches. In a room made of white walls, the light came mostly from above. Side by side. Task: “Draw this chair!”.
40 minutes. Right now!
40 minutes, 40 people. A4 sheets and pencils were pulled out like rifles and bullets in wartime. Not a peep (except for one or two nervous comments produced by fear of the unknown). Moulded by twelve years of numbers as a goal. The numbers that identified and positioned us in the group. Always in pursuit of the highest number. It’s sad to be just a number inside yourself. I was in that room for a number. For being one higher than many others that applied for the same position. We all were. ( So glad that this is not a source of pride anymore.) All numbers.
Over the next 5 months I was defeated on all fronts. Helpless in the face of the reality that I knew nothing and arrogant not to recognise it. An arrogance built on the fear of not being good enough. I couldn’t finish a drawing in the time I was given, I couldn’t find a solution for the city I was tasked to design. But the worst thing was not knowing the date of the construction of the great pyramids. At least that much, I used to do well…
But January brought an opportunity to reverse the situation: the end-of-semester tests, my first as an architecture student. “In written tests I know how to function!” I’d been doing it for as long as I could remember, and well. I did them.
The following month, I received news of the first fantastic result (the one I’m most proud of). In the front row, like a well-behaved boy, a dark figure approached and stood at the side of the table next to me (my first master). “Next time, make sure you study less.” – he said to me. He threw the sheet on the table top.
On the heading, written in red: eight and a half.
(out of 20)
“-You take a big risk by encouraging them to be artists John. When they realize they’re not Rembrandts, Shakespeares or Mozarts, they’ll hate you for it.
-We’re not talking artists George, we’re talking free thinkers.
-Free thinkers at seventeen?”
Dialogue between Mcallister (Leon Pownall) and Keating (Robin Williams).
Dead Poets Society, a film by Peter Weir, 1990.