A night on a ship
29th April 2023
coordinates
This is a story that begins on a summer morning in Monastiraki Square and ends in the middle of the Mediterranean Sea on a ship on the way to Crete.
Coisas e pessoas. Centenas de chapéus às cores e lenços estampados, milhares de bugigangas das quais se destacavam as estatuetas de mamas, rabos e pilas que tão bem decoram as portas dos frigoríficos dos nossos amigos após chegada, que tão bem representam o carácter único do sítio visitado. E, mais importante, tão bem aclamam com esplendor que em tempos fomos corajosos navegadores à descoberta: turistas.
Comprei bananas.
No chão, um comboio num vaivém constante levou-me até ao mar. Saído da estação, continuei embrenhado nos quarteirões densos. Senti, à imagem da grande cidade, excesso contínuo de informação. Sinais e cartazes decoravam fortemente os edifícios como estrelas nas árvores de natal. O tom era muito cinzento. Nem os tons pastel ocre e vermelho deslavado contrastavam. Tom cinza de ligeiro apocalipse.
Vagueei com uma sombra de companhia, ora atrás, ora à frente, ora ao lado (era bem mais colorida que qualquer outra coisa naquele sítio). Os vários corpos, alvos do meu olhar passageiro, não tentavam esconder as marcas da passagem do tempo que desgastara cada pedra, telha e tábua, assim como a seus respectivos donos.
O azul do Mar Egeu é o contraste da cidade descrita. É cor e esperança. É vontade de ir, e eu ia… Seria seu passageiro dentro de umas horas. Forte de tal forma que uma vez com ele em vista, não mais se olhava para a cidade nas costas a não ser que fosse estritamente necessário.
Era estritamente necessário. Precisava de chegar ao cais número quatro onde encontraria o barco que me levaria pela noite e Mediterrâneo dentro e lá me deixaria (no Mediterrâneo). Ladeava o porto um grande e egocêntrico corpo de movimento ruidoso composto por 8 vias para os motores delineadas por dois pobres passeios escavacados. Do lado oposto, os edifícios olhavam-me sem qualquer alma nos olhos. Com certeza, já há muito teriam desistido de viver. Agora, desabitados, sujos e abatidos, pintavam em conjunto um quadro surreal da decadência industrial.
O Kriti era um gigante de metal de calças azul-noite e chapéu amarelo. Aguardava-me na sua hora de jantar. Quando me aproximei, já as suas duas bocas estavam bem abertas. Para a maior, alinhavam-se centenas de carros e camiões que em marcha muito lenta se encaminharam para serem devorados. Passada a boca, coletes amarelos irrequietos movimentavam-se rapidamente para assegurar que os veículos encontravam o lugar que lhes tinha sido atribuído no estômago do gigante. Esta era a rotina da boca principal – a maior, ao centro da face. À direita havia uma outra para outro tipo de criaturas igualmente ruidosas. Não tendo massa suficiente para a primeira, lá fui engolido pela segunda.
Nem cinco metros dentro da besta e já estava a subir numa escada rolante colossal que, só não era a maior que já tinha visto porque havia já visitado a Filarmônica de Hamburgo dois anos antes. Não sendo a maior, era seguramente a mais íngreme. Não havia espaço a perder! A escada terminava num piso superior de rosto completamente diferente de madeira e alcatifa verde escura. Tudo meticulosamente limpo. Depois de recebido pelo capitão do navio (não que fosse especial, simplesmente ele recebeu toda a gente), dirigi-me à recepção para levantar a chave do meu bocadinho de estômago.
No quarto, pousei a mochila em cima da cama e fui à janela. Tomei consciência do quão grande era a escada rolante da entrada. Também ganhei consciência pela primeira vez de estar em cima da água. O meu cérebro programado esperava o balanço típico mas que não acontecia. O chão era tão estável quanto terra firme.
Saí e dei por mim num rodopio de movimento humano. Uma luta por espaço: pelos sofás, pelas cadeiras e pelo chão (por esta ordem). Abri uma porta pesada de metal escuro. Do convés vi outros navios, ora estáticos, ora a iniciarem a marcha e passarem incrivelmente perto. Pelas janelas pequeninas, corpos de cara desfocada retribuíram o meu olhar estupefacto com um semelhante. As diferenças de escala eram absurdas e esmagadoras. Depois, também o Kriti se lançou ao mar. Senti-o.
O vento aumentou. Fugi.
Quando voltei ao interior, grande parte da alcatifa tinha sido substituída por cobertores e sacos-cama. Acho que nunca tinha visto tanta gente a dormir no chão. Mas aquele ambiente tinha algo de especial. Era fascinante como para aquele grande grupo de pessoas, aquele espetáculo parecia tão normal como se em suas casas convivessem nas salas de estar, diariamente, de pijamas e chinelos de quarto, com mil desconhecidos.
No quarto, deitado na cama estreita, pensava a viagem. As paredes finas como papel ofereciam-me o espetáculo da vida. Dali conseguia ouvir conversas em línguas que não compreendia, corridas de atletismo arriscado pelo corredor (pouco mais largo que a minha cama) levadas a cabo por grupos de jovens energéticos, uma voz grossa de dicção abafada por um bigode farfalhudo, os gemidos muito leves e lentos de uma jovem que seguramente sorria…
Entram 1500 pessoas num navio e muito rapidamente nasce uma pequena cidade no meio do mar. A diversidade humana é motivo de conforto e confiança de que toda a nossa diferença encontrará compreensão.
Estes sons, os da vida a acontecer, não me incomodavam. Antes pelo contrário! Abstraiam-me daquele único da qual tinha dificuldade em tolerar: a repetição enjoativa e estridente de motores que trabalham em sofrimento. O devaneio foi repentinamente interrompido pelo som do telemóvel na mesinha de cabeceira que assinalava o primeiro minuto do novo dia.
Uma voz sussurrou-me:
– “Feliz Aniversário.”
Things and people. Hundreds of colourful hats and stamped scarves, thousands of souvenirs, whoose most notable were the statuettes of boobs, bums and cocks that decorate the fridge doors of our friends after we arrive, which so well represent the unique character of the place we’ve visited and, more importantly, so well acclaim with splendour the fact that we were once brave navigators on the move: tourists.
I bought bananas.
On the ground, a train in a constant loop took me to the sea. Leaving the station, I continued through the dense blocks. Like the big city, I felt a continuous excess of information. Signs and posters decorated the buildings like stars on a Christmas tree. The tone was very grey. Not even the ochre and red pastel tones contrasted. A grey tone of slight apocalypse.
I wandered with a friendly shadow, sometimes behind, sometimes in front, sometimes to the side (it was much more colourful than anything else in that place). The various bodies, targets of my passing gaze, didn’t try to hide the marks of the passage of time that had worn away every stone, tile and plank, as well as their respective owners.
The blue of the Aegean Sea is the contrast to the city described. It’s colour and hope. It’s a desire to go, and I was going to… I’d be your passenger in a few hours. So strong that once you had it in your sights, you no longer looked at the city behind your back unless it was strictly necessary.
It was strictly necessary. I needed to get to pier number four where I would catch the boat that would take me through the night and into the Mediterranean and leave me there (in the Mediterranean). Alongside the harbour was a large, self-centred, noisy body of movement made up of eight motor lanes bordered by two poor, cracked pavements. On the opposite side, the buildings looked at me without a soul in their eyes. Surely they’d given up on life a long time ago. Now uninhabited, dirty and depressed, together they painted a surreal picture of industrial decay.
Kriti was a metal giant in midnight blue trousers and a yellow hat. He was waiting for me at his dinner hour. When I approached, his two mouths were already wide open. Hundreds of cars and lorries were lined up for the larger one, heading at a very slow pace to be devoured. Once past the mouth, restless yellow jackets moved quickly to ensure that the vehicles found their rightful place in the giant’s stomach. This was the routine of the main mouth – the largest, in the centre of the face. To the right was another one for other types of creatures, just as noisy. Not having enough mass for the first, I was swallowed by the second.
Not even five metres into the beast and I was already climbing a colossal escalator that wasn’t the biggest I’d ever seen only because I’d visited the Hamburg Philharmonic two years before. Although it wasn’t the biggest, it was certainly the steepest. There was no room to lose! The staircase ended on an upper floor with a completely different face made of wood and dark green carpet. Everything was meticulously clean. After being greeted by the ship’s captain (not that I was special, he simply greeted everyone), I went to reception to pick up the key to my own little piece of stomach.
In the room, I put my rucksack down on the bed and went to the window. I realised how big the escalator in the lobby was. I also became aware for the first time that I was standing on water. My programmed brain expected the typical rocking, but it didn’t happen. The floor was as stable as solid ground.
I left and found myself in a swirl of human movement. A fight for space: for the sofas, the chairs and the floor (in that order). I opened a heavy dark metal door. From the deck I saw other ships, some static, others getting underway and passing incredibly close. Through the tiny windows, blurry-faced bodies returned my astonished stare with a similar one. The differences in scale were absurd and overwhelming. Then Kriti, too, threw himself into the sea. I felt it.
The wind increased. I ran away.
When I got back inside, much of the carpet had been replaced by blankets and sleeping bags. I don’t think I’d ever seen so many people sleeping on the floor. But there was something special about the atmosphere. It was fascinating how, for that large group of people, that spectacle seemed as normal as if they were living in their own living rooms every day, in their pyjamas and bedroom slippers, with a thousand strangers.
In the bedroom, lying on the narrow bed, I thought about the journey. The paper-thin walls offered me the spectacle of life. From there I could hear conversations in languages I didn’t understand, daring athletics races down the corridor (barely wider than my bed) carried out by groups of energetic young people, a thick voice with muffled pronunciation through a bushy moustache, the very light and slow moans of a young woman who was certainly smiling…
1500 people board a ship and very quickly a small town is born in the middle of the sea. Human diversity is a source of comfort and confidence that all our differences will find understanding.
These sounds, the sounds of life happening, didn’t bother me. On the contrary! They distracted me from the only one I had difficulty tolerating: the sickening, strident repetition of engines labouring in pain. My wandering was suddenly interrupted by the sound of the phone on the bedside table, announcing the first minute of the new day.
A voice whispered to me:
– “Happy Birthday.”
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