Glossário
antípoda – extremidades opostas de um dos diâmetros da Terra e/ou Habitante que ocupa cada desses mesmos pontos
estupidez voluntária – ignorância intencional resultante de negação sistemática e irracional de conhecimento científico fundamentado
Flat Earth Society – Organização ativa na defesa de que a Terra é plana e que a gravidade não existe. Criada em 1956 por Samuel Shenton, tem atualmente base em Londres, Inglaterra.
Havia uma família de sete. Dos sete apenas existem, para todos os outros, dois, cuja memória perdura apenas numa amálgama apertada desprovida de nomes próprios. Nesses nomes se esgota o conteúdo didático deste texto. Wilbur e Orville. A sua utilidade é questionável.
A cadeia de acontecimentos aqui a mencionar começou a sua precipitação no século passado numa colina de areia escolhida a dedo de uma lista de lugares tão dispersa como os próprios Estados Unidos. A sua escolha foi amplamente técnica. Um local com colinas suaves e regulares para o posicionamento do dispositivo de voo para descolagem e planícies planas e desobstruídas para a aterragem. Também era necessária complacência meteorológica sob a forma de ventos moderados e regulares que permitissem a continuação dos trabalhos dia após dia. Por último, anonimato.
A 17 de Dezembro de 1903, perante a necessidade de condutor, os dois irmãos tomaram o único caminho humanamente ético e responsável: sortearam palhinhas. Pois bem, não se sabe quem ganhou o jogo da sorte, apenas que foi Orville a subir e montar-se na máquina que viria a ficar conhecida por Flyer I, Voador I. O aparelho contava com uma fisga para a propulsão inicial, um eixo tripartido para a manobração e a areia e vegetação rasteira associada à boa fé para a aterragem. O sucesso apareceu sob a forma de 12 segundos de deslocação aérea controlada sem contacto com o solo.
Os irmãos Wright não terão compreendido que a magnificência dos seus atos seria bem superior à capacidade de voar de forma controlada. Os Voadores viriam a ter um papel preponderante nas várias ciências das quais se destaca a geografia. E, acima de tudo, viriam a permitir às massas a comprovação empírica definitiva de dois pontos: 1. que vivem num aquário; 2. que a estupidez voluntária é uma das suas predisposições crónicas. A experiência pessoal que descreverei fala da primeira alínea. Sobre o segundo ponto farei uma breve nota na conclusão.
Este legado dos irmãos permite hoje percorrer rapidamente grandes distancias o que se torna fundamental para qualquer antípoda ou aspirante pois o planeta Terra é realmente grande. Tanto que, ao vê-lo de cima, de uma das camadas da atmosfera ou do espaço sideral, o ser humano tende a sentir-se desconectado devido à dificuldade em assimilar a diversidade infinita de cada espaço próprio. Por isso, o “outro lado do mundo”, o lado oposto ao sítio onde assentamos no planeta, é difícil de entender até ser visitado. Propus-me a fazê-lo.
Se perguntassem à minha versão de seis anos onde ficava o outro lado do mundo, veriam-me muito ligeiro e muito rasteiro sair de casa em direção ao descampado de terra batida do outro lado da rua. Se porventura, num universo alternativo, essa versão de criança tivesse perceção completa do que significa geograficamente o “outro lado” então, não tenho dúvidas, veriam-me, igualmente rasteiro, dirigir-me à drogaria do bairro e pedir a maior broca disponível. Afinal, toda a gente sabe que a melhor forma de lá chegar é escavando um grande buraco até ver luz do outro lado, passando talvez pelo centro. Toda a gente sabe, até crescer… Vim de avião, como qualquer um. A experiência de que falo foi precisamente a viagem de avião, concretizada num esmagamento espetacular do tempo cronológico com o psicológico.
Sem fisga de descolagem e/ou presságios de queda gentil para a aterragem, o Boeing 787 levantou do asfalto quente do Charles de Gaulle graças à vontade e a dois poderosos motores Rolls Royce de origem britânica algures perto das segundas oito horas do dia, em direção à Índia. Pouco depois assisti a um espetáculo de luz único que coincidiu com o pôr-do-sol mais fugaz que já vira; um instante apressado. A explicação do porquê desagua este devaneio no título apresentado.
É sabido que esta bola celestial, onde à superfície esperneamos, performa planetariamente dois movimentos: uma dança a solo e outra com amigos. A solo, roda sobre si a uma velocidade superior a mil e seiscentos quilómetros/hora, sempre no sentido este-oeste. Ora, o Voador que me transportava movia-se em sentido contrário a velocidades razoavelmente altas (cerca de 900 km/h). A junção dos dois movimentos transformou, para os tripulantes da máquina, a dança de claros-escuros numa experiência surrealista traduzida no pôr-do-sol apressado. Pois bem, significa esta circunstância que quando voltei a tocar no solo, na capital indiana, nove horas depois, já o sol estava bem alto. A minha minha perceção do tempo encontrava-se completamente desvinculada da memória empírica automática.
Após cinco horas em solo indiano, uma mala esventrada por raios-x e um par de olhares ameaçadores devido a um estojo e um x-ato parti novamente em direção a Melbourne, no sul da Austrália. O sol partiu pouco depois num esgar de luz laranja, outra vez… Ficou um céu escuro e uma linha clara ténue num horizonte longínquo e acentuadamente curvo. Por momentos, toda a atmosfera tinha desaparecido, inspirada por gigantes, e tudo o que dividia a terra do infinito era aquela curva de luz que esmorecia. No fim, tudo era infinito.
A escuridão pouco durou e o sol nasceu com força e rapidez horas antes de chegar ao destino. Desci do avião bem iluminado, aquecido pelos raios de luz em revolta com o ar gélido de Inverno. Em menos de vinte e quatro horas fui do Verão ao Inverno, vi o sol pôr-se, nascer, voltar a pôr-se e voltar a nascer, sempre num espetáculo de luz e cor tão rápido como espetacular. O meu corpo dividia-se entre cansaço e entusiasmo. Senti-me a sair duma máquina do tempo e partilhei os seus efeitos secundários. Estava confuso, o corpo descompensado e o meu relógio biológico aparentava falhas graves. A solução passou pela dedicação empenhada ao sono. Dormi durante quatro dias.
Nota sobre o ponto 2. – que a estupidez voluntária é uma das suas predisposições crónicas – um exemplo apropriado ao caso.
A Teoria da Evolução das Espécies (Darwin, 1859) diz-nos que as espécies garantem a continuidade consoante estarem mais ou menos adaptadas aos desafios ambientais/climáticos impostos, à sobrevivência face aos predadores e à obtenção de alimento suficiente. As respectivas evoluções estão diretamente ligadas à resposta a estes desafios. Também nos diz que, “qualquer variação nociva, por pouco que o seja, será certamente destruída”. No Homem, no seu quê de natural, estas leis atuam da mesma forma. Já quanto ao domínio do pensamento científico, lógico e social, esta espécie casmurra, tende a ter dificuldade em livrar-se do peso morto, revolvendo-se em premissas provadas erradas demonstrando traços de ignorância intencional e revolta incipiente. Um exemplo que faça sentido neste contexto:
Sabemos de três personagens muito lá atrás, na Grécia Antiga. Pitágoras, Aristóteles e Eratóstenes. O primeiro tinha a perceção que a Terra tinha forma esférica. O segundo fundamentou-o com recurso à observação atenta da Lua e das suas fases. O terceiro propôs-se a descobrir qual o diâmetro da bolinha e falhou o cálculo dos cerca de quarenta mil quilómetros em menos de 1%. Viveram entre 500 e 200 antes de Cristo. Em 1946, fotografou-se, pela primeira vez, a superfície terrestre a partir do espaço e em sessenta e nove tocou-se na superfície lunar. Atualmente, um exército de satélites mapeiam diariamente o planeta de polo a polo. O assunto parece encerrado. Mas a nossa agudeza de espírito é imatura e a forma terrestre é ainda uma questão em aberto para uma parte da população.
“I guess we’re debating how water sticks to a globe again” é o título do último espaço de debate no blog da Flat Earth Society, uma organização para o conhecimento que, desde 1956, procura refutar a ideia de que a Terra é um geóide. No seu website próprio afirma, por exemplo, que “a gravidade é uma teoria falsa, os objetos apenas caem”. O seu blog digital tornou-se um espaço para membros e críticos entrarem em discussões aleatórias aparentemente científicas cuja argumentação é frequentemente fortalecida com as palavras “teoria da conspiração”. Como primeiro ponto, na sua página de perguntas e respostas, surge a questão “Are you serious?”. Esperava uma resposta em maiúsculas mas fui surpreendido. A evolução é difícil e lenta.