Ordinary ruben | Ruben Vasques

Políticas da Floresta

Pinheiros contra Calipos

Quase toda a minha vida vivi em Portugal, onde nasci, apesar de agora ser habitante de uma longínqua Austrália. E na memória desses tempos, de uma infância distante, está-me presente o cheiro forte a folhas de eucalipto fervidas em água, que rompia na cozinha da minha avó em tempos de crise. Como uma bomba, abria cada alvéolo e restante infraestrutura até à ponta vermelha do meu nariz. E não era difícil encontrá-los. Subindo a pedreira, em direção às casas novas, lá se chegava à bouça. Naquela massa de árvores que ligava as freguesias de Beiriz e Terroso, encontravam-se eucaliptos com fartura. Todos iguais, altos e magrinhos como eu sempre fui. Só muitos anos mais tarde, descobri que aquelas árvores não pertenciam ali. Era uma espécie invasora que tomara o espaço do pinheiro tradicional. Finalmente, fazia sentido o porquê da minha avó os chamar de “calipos”. Afinal, aquela era a coisa dos tempos modernos. Modernices! Não muito diferente da famosa “chicla” (vernáculo de chiclete). 

Ora, no verão de 2017, em Pedrógão Grande, começava um incêndio a mando de bandidos, segundo se conta. E em Góis outro! Num golpe de tragédia grega, juntaram-se formando um, verdadeiramente diabólico, que viria a ser o pior desde que há registo, tendo-se perdido vidas de várias famílias, incluindo da Myrtaceae e da Hominidae*. Uns dias mais tarde, toda a gente sabia que esta (a eucalyptus) era uma espécie invasora, agora persona non grata, cujo visto de residência se via naquele instante rejeitado, sem direito a deportação. Afinal, aqueles seriam os culpados de tudo pela sua natureza altamente inflamável. O conceito de imigrantes ilegais tornava-se agora, para toda uma população, mais lato. “Mas como diabo vieram aqui parar? O que aconteceu ao Pinheiro?” Com certeza que, a partir daqui, alguns nacionalistas tomaram conta do assunto.

Eucaliptos em Gippsland, Victoria, AU.

Ora, quando no verão passado aterrei em Melbourne, chegava, na verdade, à terra dos ditos cujos, eles os nativos, eu o imigrante. Por isso, olho bem aberto que não queria mal-entendidos, e sorriso nervoso e imediatamente culpado, assim que a agente alfandegária descobriu o naco de presunto nacional de quilo e duzentas, mesmo por baixo da capa de chuva barata. De mãos no ar, lá abri mão do presunto sem argumentar. Fiquei com a capa de chuva que desde então nunca mais me serviu para coisa nenhuma. 

É por isso estranho admitir que não consegui reconhecer os nativos de imediato. Na segunda semana visitei, na baía de Melbourne, um parque natural de grandes dimensões, onde vi cangurus pela primeira vez. O parque era todo ele feito por umas árvores gigantes, espessas, de folhas perfumadas e longos cachecóis de casca solta, tal como aqueles que vemos no nosso território, mas de tamanho colossal, como se apenas as crianças tivessem sido enviadas para terras lusas. Outras, apesar de dimensões mais pequenas, têm mutações fascinantes, o que reduz as nossas a não mais que primos afastados. Ao todo, são mais de oitocentas as espécies desta família, umas muito altas e direitas, outras altamente emaranhadas, com troncos feitos de arco-íris ou com flores encarnadas como lava incandescente. 

No entanto, foi imediata a identificação das grandes árvores de uma propriedade que ladeavam a estrada nacional à entrada de Fish Creek, em terras de Gippsland. Grandes, verdes e pontiagudos. Eram assim os pinheiros que se apresentavam aos visitantes, uma vista surreal de um português que sabe bem as origens daquelas árvores. Enquanto voluntário na Tarwin River Forest, não demorei a perguntar a alguém pela presença dos pinheiros ali: “É uma vergonha!”

Ao que parece, são tão odiados cá quanto os eucaliptos no nosso país. Ouvi as mesmas opiniões hostis, só se invertiam os nomes dos acusados e a nação dos acusadores. Mas, naquele sítio, este era tema particularmente sensível, uma vez localizar-se ali ao lado um dos mil terrenos negociados por uma grande empresa madeireira com o governo australiano, que por uma quantia milionária garantia o direito de abater, varrer e aspirar toda a flora que ali vivia, maioritariamente constituída por eucaliptos. “Onde entram os pinheiros?

Os pinheiros, algures a sul de Fish Creek, Victoria, AU.

Eis o que me contaram. Tem tudo a ver com um rótulo: madeira certificada, obtida de forma sustentável. Pois este rótulo confere aos interessados uma subida drástica e supostamente justificada de preços, à custa da consciência ambiental dos consumidores. Mas este pedaço de papel autocolante exige esforço. Como quem diz, dinheiro. A madeireira paga uma quantia desconhecida a uma empresa independente que atesta o cumprimento de vários parâmetros necessários à certificação, dos quais se destacam alguns sobre o dano ambiental como o assegurar de que não foi abatida a floresta nativa, e o consequente prejudício ambiental que isso acarreta. E agora sim, venham os pinheiros. Acontece que flora nativa atrai a fauna nativa numa simbiose perfeita típica de um ecossistema natural. Por isso, se forem cortados eucaliptos e plantados novos, dentro de 20 ou 30 anos, os animais já se apoderaram do espaço novamente, das árvores. E os problemas ambientais, na hora do abate, voltam a colocar-se. A situação piora muito se alguma alma gentil topar a ocorrência e atravancar o abate com ordem judicial.

Contudo, se por sua vez forem plantados pinheiros, espécie não nativa, os animais já não voltam. A floresta mantém-se o mais isolada possível. Já não se levantam entraves à destruição bruta e desgovernada de massas verdes e o povo fica sem argumentos. A floresta, afinal, não é floresta, mas sim um conjunto de criaturas ao alto, abandonadas por todos, em terras desconhecidas, criadas para a motosserra e nada mais. Retira-se-lhes tudo, inclusive a sua identidade, enquanto átomo ínfimo deste organismo extenso chamado natureza, da qual teimamos em mostrar distância e superioridade. E como o número de atentos está a aumentar, então que se cortem todos os nativos com celeridade, enquanto a maioria ainda dorme de olho fechado. 

Não fiquei surpreendido pelo plano diabólico que acabara de ouvir, mas pelos meus 27 anos de ingenuidade no assunto e envergonhado por todo o móvel barato de madeira que comprei por capricho. Quase que parece um caso de teorias da conspiração, mas estas, normalmente, nunca fazem sentido e desaguam sempre num rapto extraterrestre. 

Quanto ao problema, é de resolução complexa mas possível. Abater intensivamente uma floresta inteira não é a única forma de obter os recursos que precisamos, apenas é a mais lucrativa. E aprendi como deve ser feito, mas a não ser que eu próprio funde uma empresa madeireira com boas práticas, parece-me difícil ser realmente relevante. Ou será que não…

Talvez possa fazer outra coisa: abrir a boca, ou neste caso, a tampa da caneta.  É que se um conta hoje a outros dois, e estes a dois mais amanhã, não demoraria um mês para que todos soubessem, nomeadamente, os trinta e sete milhões, trezentos e quatorze mil, quatrocentos e noventa e um habitantes que compõem a população dos dois países (tal é o poder fantástico da matemática).
Se leste isto, então já contei a alguém

* respetivamente, família de plantas à qual pertence a espécie Eucalyptus, eucaliptos, e família à qual pertence o Homo sapiens, o ser humano.

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