

Neste preciso momento, o meu irmão encontra-se numa remota planície africana, viajando da forma que mais adora, longe da civilização, perto da natureza. Estas fotografias foram tiradas uns dias antes de o ter deixado no aeroporto onde, de verde, iniciava uma nova e fantástica jornada. Admiro-o.
Já que na remotidão a rede de telemóvel é uma miragem, se estás a ler isto nos primeiros dias após publicação, é segredo;
Não gosto de verde. Ou melhor, não gostava. De toda a paleta conseguia conviver com alguns tons mais escuros. Aqueles que se encontram nas florestas do Norte da península em dias frios de inverno, quando envolvidas na névoa matinal e na humidade gélida das gotas de orvalho. Cor de funcho molhado, à sombra, que reconhecia como o cheiro da liberdade. À medida que o espectro ficava mais claro, deixava de me interessar. Intensificar a saturação apenas fazia crescer a minha aversão. Nunca vesti verde em pequeno.
Assim era também com o meu irmão. Tenho ideia que sim. Na verdade, em miúdos, pouco me lembro do meu irmão. Acho que se deve ao fato de pouco termos brincado juntos e, em crianças, todo o tempo em que se não brinca não existe. Neste sentido, os sete anos que separaram os nossos nascimentos foram uma tragédia. Em tempos em que o meu raio de ação se resumia a espalhar grandes quantidades de saliva viscosa, comer e defecar, semelhante a qualquer cão domesticado, já ele frequentava a escola. Ainda não arranhava vogais soltas e ele já escrevia e cantarolava de cor o hino nacional – mérito da nossa avó materna. E as diferenças não se ficavam por aqui, exibiamos caráteres igualmente contrastantes.
Ele era um puto calmo, pacato, de rápido assobio para o lado em toda e qualquer situação inútil, ignorante, constrangedora ou simplesmente exterior a ele. Na altura, a sua grande virtude residia na mediocridade inabalável que demonstrava em qualquer atividade que lhe tivesse sido impingida sem que tivesse demonstrado particular entusiasmo, tais como estudar funções simples ou ler sobre famílias ricas e incestuosas. Lá safava um “satisfaz” no último período tirando gozo especial do quase ataque cardíaco da nossa mãe que vivera todo o ano apavorada com premonições de chumbo redondo. A cada outono o jogo recomeçava novamente…
Já eu era o contrário de calmo e pacato. Impregnado com os genes dramáticos da minha família materna recitava orgulhoso as cantigas do santo eucaristia como um menino bem comportado e atentava, frequentemente, na lição enigmática narrada pelas catequistas velhinhas todas as semanas. Uma criança excessivamente emocional e dependente que se esgueirava, sempre que possível, para a cama da mãe. Inseguro, frágil, com medo do desconhecido e de tempestades.
Tinha dez anos quando mudei de escola. Ia finalmente crescer quando deixei de viver com o meu irmão. Passei a vê-lo apenas nos dezembros de cada ano. Ele tinha-se tornado emigrante e eu filho único, consequência da distância. A década seguinte passou em ebulição constante, cada um com a sua vida, nem longe nem perto. E depois, aconteceu a fantástica e inexplicável magia da vida. Crescemos, e a distância física mostrou-se apenas assim e nada mais que isso, uns milhares de quilômetros, e nós tornamos-nos no mesmo. Iguais. Com muito de diferente. Confidentes. Entre outros, marca-nos o gosto pela fotografia, por um bom passeio de bicicleta e uma forte vontade de partir para parte incerta.
Há uns anos, fiz-lhe companhia até uma loja de equipamento desportivo. Enquanto vaguevamos pelos corredores ele diz-me o inesperado – “Vamos à secção de caça.” Sabia que ao longo dos anos tivera muitos hobbies diferentes. No guarda-fatos ainda restam equipamentos de quando jogava futebol na equipa local; no canto do escritório dormem rolos de fio de milho dos tempos de fascínio pela impressão a três dimensões e no sótão, ainda restam alguns pequenos motores, carroçarias, asas e hélices dos tempos em que se tornou piloto de aeronaves em miniatura. Mas caça? Deixei a história desenrolar-se.
Aquela era uma secção muito peculiar. Existiam botas rígidas, meias e luvas farfalhudas, calças interiores e exteriores, polares e casacos semelhantes a cobertores. Tudo porque a caça é hoje uma atividade de preguiça. Já ninguém corre atrás dos Labrador atrás da lebre ou do javali. A bala faz todo o trabalho. O animal cai. (Perdoe-se a supersimplificação de um leigo.) Adiante, todo este arsenal mantém o caçador aconchegado e quentinho, de bom humor, simpático, não que os animais o sintam claro. A peculiaridade daquele espaço estava no facto de todo este repertório ser rigorosamente disponibilizado em três cores: verde pastel claro, verde pastel escuro e camuflado de floresta (nome técnico para o estampado artificial de formas e cores que imitam, no tecido, um ambiente natural; o camuflado de floresta é composto por aglomerado aleatório de verdes). Ocasionalmente surgem restos de castanho. Pois bem, fiquei convencido. Da parte dele, vi-lhe os olhos encherem de entusiasmo. A sério, sem ponta de ironia.
Dias mais tarde, vi-o vestido daquele verde de extremidade a extremidade, das botas ao boné. Às costas levava um grande saco impermeável estilo militar e na mão, passagens para o Botswana via África do Sul. Seria esta a altura ideal para vender ao leitor as suas fantásticas histórias das caçadas performadas com as tribos selvagens às grandes manadas de gnus mas parece-me óbvio, até para o leitor, que tal alma dócil não se tornou uma assassina visceral de criaturas sagradas nem perseguidora de bambis ou pumbas. Na mochila, em vez da espingarda, levava uma teleobjetiva sony que, munida com o conversor de 1,4 vezes, conseguiria uma distância focal próxima dos oitocentos milímetros, suficiente para o fazer sentir o bafo de um elefante, mesmo que a cem metros de distância.
Ano após ano, volta, de verde, àquele continente por altura do Inverno europeu, Verão e época das chuvas na maioria daqueles países. Um guia encarrega-se de o embrenhar no mato o máximo possível, afastando-se decididamente das massas humanas constituidoras de ruído. O mundo natural, diz-me, é simples, assente em leis justas de eficiência. Nada se desperdiça, não há lixo nem sobreprodução. Conta-me como, na maioria do tempo, todos os animais coexistem. Leões e antílopes lado a lado, até que o primeiro tenha fome… E depois, um banquete para todos. Primeiro os leões, depois a hienas, os pequenos carnívoros e por fim os abutres. No fim, da carcaça não restam vestígios, e a definição de crueldade é apenas coisa das nossas cabeças.
Por sítios remotos de difícil pronúncia, vagueia num mundo paralelo onde os recursos são escassos e o desconforto abundante, assim como as árvores de fruto e a fome. Certos dias, quando a ligação o permite, lá consegue fazer passar uma mensagem rápida e um pequeno conjunto de fotografias. Nelas, vejo-o alterado. O cansaço patente na face escurecida abaixo dos olhos, os lábios gretados, secos, e a pele desgastada e requentada pelo sol implacável. De polar, verde, apresenta-se de sorriso cansado mas rasgado. Vejo-o. É a visão de um aventureiro, um viajante que se esgota todo ele na viagem, deixando que no fim, ela o volte a compor mais inteiro que nunca.
Sentiu a areia do deserto, a humidade da floresta tropical e o ar frio da savana depois do sol aterrar. Sentiu o olhar vil de um leão que o olhava sem ser notado, atentou no tamanho surpreendentemente pequeno de uma chita, deslumbrou-se pela beleza contrastante dos fatos de gala das zebras e arrepiou-se de medo com o barulho ensurdecedor dos babuínos enquanto circundam o acampamento à noite. Sentiu o conforto aconchegante facultado pelo estado de impotência. Ali, é deixar rolar. E vestir verde…
Porque verde é um fato de invisibilidade. É a forma de pedir emprestadas as características desviantes típicas dos polvos do oceano e conseguir, alí, misturar-se no ambiente e passar completamente despercebido. Alí, é tudo sobre adaptar, agir em conformidade e não chamar a atenção. Ser herói é risco acrescido de virar ementa de almoço. Se souberes existir, poderás existir. Leis simples e justas de eficiência… e etiqueta. Não tardará o dia em que o anonimato será tão venerado quanto o estrelato.
Hoje, também eu visto verde. Ligeiramente. No meu guarda roupa, encontra-se somente uma peça de verde escuro que carinhosamente trouxe comigo para o outro lado do mundo, presente da minha mãe. Também eu aprecio o aroma perfumado de ser anónimo. Pena, é ainda não ter ido a África ver os leões com o meu irmão. Pena, é ter que aceitar que o verde da cidade, é cor de alcatrão.
Bela história!
Inspira a marcar a próxima viagem