17th September, Trindade Square, Porto, Portugal
Alguns dias após ter escrito “Heróis na educação: uma segunda lição”, quando o reli, fiquei com a noção que aquela era na verdade uma exposição sobre o ato de observar no processo de aprendizagem. Ponderei inclusive alterar o título do mesmo, de forma a integrar explicitamente o conceito. Optei, contudo, por não o fazer uma vez que observar não implica encontrar os nossos heróis, apenas a relação inversa se verifica. Este, por sua vez, é o relato de um episódio observado, que nada tem a ver nem com o processo de aprendizagem, nem com figuras charneira.
Já passava do meio-dia quando desci a Rua de Fernandes Tomás em direção à Igreja da Trindade. Daquele ponto de vista, pelo seu corpo, o seu reconhecimento não é tão obvio, contudo, a torre que se sobrepõe ao adjacente não deixa que passe despercebida.
Imediatamente à sua frente, uma praça não muito grande encerra a missão de intermediar os dois gigantes: a já conhecida Igreja da Trindade e a Câmara Municipal que, como esperado numa autêntica luta de galos, também possui a sua própria torre.
A derradeira mediadora destas tensões, a praça, tenta agradar a todas as partes. Mas a tensão existe! E concentra-se numa estreita linha de sebes que divide o parque de estacionamento da Câmara Municipal da praça mais nobre, com uma fonte central que monumentaliza a igreja.
Três bancos de estrutura rígida e assentos em madeira guardam a fonte: um paralelo à linha de sebes e os outros, a norte, abrigam-se por baixo das grandes árvores que lá estão.
Também eu procurava abrigo. O sol estava forte apesar de correr o mês de setembro. Desconfortável e cansado. A sandes na mochila era mais um motivo para que a sombra das árvores e o aconchego do banco fossem tão apelativos. Sentei-me. Libertei um dos pés da sapatilha já com um leve desconforto (problemas da maldita assimetria, fosse ela natural ou industrial). Retirei a sandes do saco e um livro, o meu atual companheiro de viagem: “A Anatomia da Errância”, de Bruce Chatwin. Será fácil ao leitor deduzir que me sentei num dos bancos à sombra: o do meio de entre os três.
Maximillian Todd andava pelo Chile em viagem, por terreno montanhoso e guiado por um volume de “Patagonian Researches”. A imagem do mundo imaginário vibrante, onde via esta viagem decorrer por entre a incrível seleção de espécies de plantas, foi rapidamente interrompida com o aproximar de um pequeno grupo de turistas que se sentou imediatamente ao lado.
A senhora mais perto de mim, talvez com uns 65 anos, muito apressadamente, depois de se sentar, retirou um pequeno caderno e uma banalíssima caneta (daqueles que frequentemente recebemos de brinde de empresas que nos abordam aleatoriamente) com que começou a escrever. Veio-me à cabeça imediatamente a curiosidade sobre o que estaria a escrever.
Por momentos, impersonificou o próprio Bruce Chatwin a quem a Patagónia se havia transformado no Porto. Talvez descrevesse, como eu, mas de forma diferente, aquela praça, a linha de sebes, a igreja e a câmara municipal, quiçá a sua luta.
Estes são os sonhos fantásticos possibilitados pela visão periférica, nunca muito concreta, sempre muito subjetiva. Vemos o que queremos.
É coisa de observador que se ficou pelo “observar mais ou menos”. Suponho que então tenha merecido a pequena desilusão sentida ao ver a minha entusiasmada narrativa esmagada por um feíssimo jogo de sudoku acabado de se iniciar, de linhas negras e espessas, ligeiramente borratadas (nem a impressão era boa). Alheia ao meu pensamento, a senhora continuava de caneta inquieta como que decidida a terminar o exercício em tempo recorde.
À nossa frente estava alguém excecional (no sentido mais literal da palavra). Uma outra senhora, talvez uns 15 ou 20 anos mais nova que a primeira, estava sentada e isolada no banco paralelo às sebes e totalmente exposto ao sol. Aquela seria a única pessoa, das dezenas que ali se encontravam, a não procurar abrigo do sol. Por isso tinha um banco só seu. Por isso era a exceção.
Sozinha, como eu, balançava de forma constante e sucessiva o seu corpo para trás e para a frente. Estava irrequieta (como a caneta). Mas o que me chamou à atenção foi o fato de o olhar estar ainda mais agitado que o corpo.
Podia-se à primeira vista confundir a sua atitude com a de nada fazer, mas não me pareceu o caso. Aquela era uma verdadeira observadora que se alimentava da cidade, que ganhava grande gozo em ser o negativo. Era a contra força ao movimento constante que, pela inércia do quotidiano, tem dificuldade em abrandar e que ela observava (talvez fosse).
Apesar de olhar para tudo como se nunca o tivesse visto, não me pareceu que fosse alguém novo por ali. Não se fazia acompanhar de nenhuma mala. Não vi telemóvel em punho ou câmara fotográfica. As roupas eram de tom sóbrio, escuros. Claramente não fazia cerimónia em estar ali como normalmente acontece quando encabeçamos o papel de forasteiro. O cabelo estava despenteado, grisalho. As mãos e o rosto secos e enrugados sugeriam uma idade mais avançada, do que penso que teria na realidade.
A cidade, a sociedade, consegue ter vivências brutais, pressionando por vezes de forma cruel a sua força trabalhadora, na qual se alicerça. Esta é surpreendentemente resiliente.
O impacto e pertinência destas duas personagens apenas acontece pela sua coexistência no mesmo espaço. De certa forma, são ambas pontos destoantes naquele contexto, mas de formas incrivelmente antagónicas.
Uma, de visita à cidade, que se fartara de a ver. A outra faz parte da cidade, e olha-a como se nunca a tivesse visto.
Consigo colocar-me na posição das duas. O que as distancia são aqueles dez metros de cubo de calcário e a linha ténue do tempo, que numa mostra memórias, calor e frio, e noutra o cansaço da viagem.
(Em viagem ou fora dela, não sou pessoa de jogos sudoku.)
A few days after I wrote the article “Heroes in Education: a Second Lesson,” when I reread it, I got the notion that it was actually an explanation on the act of observing in the learning process. I even considered changing the title of the article to explicitly integrate the concept. However, I chose not to do so since observation does not imply finding our heroes, only the inverse relationship applies. This one is a report of an observed episode, which has nothing to do either with the learning process or with the heroic figures.
It was already past midday when I walked down Fernandes Tomás Street towards Church of Trindade. From that point of view, from its body, its recognition is not so obvious, however, the tower above the adjacent one does not let it go unnoticed.
Immediately in front of it, a relatively small square has the task of mediating between the two giants: the well-known Church of Trindade and the Town Hall, which, as expected in a real cockfight, also has its own tower.
The ultimate mediator of these tensions, the square, tries to please all parties. But tension exists! And it is concentrated in a narrow fence line that divides the Town Hall car park from the more noble square, with a central fountain that monumentalises the church.
Three benches of rigid structure and wooden seats guard the fountain: one parallel to the fence line and the others, to the north, sheltered under the large trees there.
I too was seeking shelter. The sun was strong despite it being September. Uncomfortable and tired. The sandwich in my backpack was another reason why the shade of the trees and the cosiness of the bench were so appealing. I sat down. I released one of my feet from my shoe already with a slight discomfort (problems of the damn asymmetry, natural or industrial). I took the sandwich out of the bag and a book, my current travelling companion: ” Anatomy of Restlessness” by Bruce Chatwin. It will be easy for the reader to deduce that I sat on one of the seats in the shade: the middle one among the three.
Maximillian Todd was travelling through Chile, over mountainous terrain and guided by a volume of ‘Patagonian Researches’. The image of the vibrant imaginary world, where I saw this journey taking place amongst the incredible selection of plant species, was quickly interrupted by the approach of a small group of tourists, who immediately sat down next to me.
The lady closest to me, perhaps 65 years old, quite hurriedly, after sitting down, took out a small notebook and a very vulgar pen (one of those that we often receive as a gift from companies that approach us randomly), with which she began to write. I was immediately curious as to what she was writing.
For a moment she impersonated Bruce Chatwin himself, whom Patagonia had transformed into Porto. Perhaps she was describing, like me, but in a different way, that square, the hedge line, the church and the town hall, maybe their struggle.
These are the amazing dreams made possible by our peripheral vision, never very concrete, always very subjective. We see what we want to see.
It is a thing of an observer who sticks to “more or less observing”. I suppose that I deserved the little disappointment felt when I saw my enthusiastic narrative crushed by an ugly sudoku game just begun, with thick black lines, slightly blurred (not even the impression was good). Unaware of my thoughts, the lady continued with her pen unrest as if determined to finish the exercise in record time.
In front of us was someone exceptional (in the most literal sense of the word). Another lady, perhaps 15 or 20 years younger than the first, was sitting isolated on the bench, parallel to the bushes and totally exposed to the sun. That would be the only person, of the dozens that were there, not seeking shelter from the sun. That’s why she had a bench of her own. That’s why she was the exception.
Alone, like me, she was constantly and successively bouncing her body back and forth. She was restless (like the pen). But what caught my attention was the fact that her eyes were even more agitated than her body.
One might at first glance mistake her attitude for doing nothing, but that didn’t seem to be the case. She was a true observer who fed off the city, who took great delight in being the negative. She was the counter-force to the constant movement that, because of the inertia of daily life, finds it difficult to slow down and that she observed (perhaps she was).
Although she looked at everything as if she had never seen it before, it did not seem to me that she was someone new there. She didn’t have a bag with her. I didn’t see a hand-held cell phone or camera. The clothes were of a sober, dark tone. She clearly did not make a ceremony of being there, as normally happens when we assume the role of a foreigner. Her hair was scruffy, grey, her hands and face were dry and wrinkled, suggesting a more advanced age than I think she would be in reality.
The city, the society, can deliver brutal experiences, sometimes putting ruthless pressure on its labour force, on which it is based. This one is surprisingly resilient.
The impact and pertinence of these two characters only happen because of their coexistence in the same space. In a way, they are both disconnected points in that context, but in incredibly opposing ways.
One, visiting the city, was tired of seeing it. The other is part of the city, and looks at it as if she had never seen it.
I can put myself in the position of both of them. What separates them are those ten metres of limestone cube and the fine line of time, which in one shows memories, heat and cold, and in the other the fatigue of the journey.
(Whether travelling or not, I’m not one for Sudoku games.