

essência
(es·sên·ci·a)
nome feminino
O que constitui o ser e a natureza das coisas.
Qualidade predominante ou virtual de (plantas e drogas).
O que há de mais puro e subtil (nos corpos).
Ser; existência.
Óleo essencial ou volátil.
Carácter distintivo.
Ideia principal.
fonte: Priberam
Sei de uma história antiga. Há 180 anos atrás, oito dias depois de ter celebrado o seu vigésimo oitavo aniversário, um jovem desengonçado de cabelo despenteado, olhos esbugalhados e nariz grande e acidentado bateu a porta de sua casa atrás de si e pôs-se a caminho. Em direção a sudoeste, deixou a orla urbana com destino a um lago a pouco mais de duas milhas de distância. Chegou. Bem dentro de propriedade privada, sabia que não ia ser importunado naquelas terras, apesar da aparência pobre fruto do seu amor por roupa velha. Exceto pela amizade! Não fosse o Senhor seu aliado e admirador. E importúnio é coisa desconhecida à nobre visita de um amigo.
Mas este homem estava consciente que aquele ato que tinha iniciado não era compatível com aglomerados humanos, com o whiskey envelhecido, o tabaco mastigado e as mesas de cochichos das soirées da alta sociedade. Pois aquele era um ato de solidão. O plano era o isolamento e o desapêgo. O primeiro das pessoas e o outro das coisas. Ambas necessárias para criar raízes em profundidade no meio natural. Deixou cair tudo à exceção da essência.
O seu primeiro ato foi construir uma cabana de três por quatro metros. No interior, no espaço único organizavam-se três zonas, quatros objetos: o fogo e a lareira, o descanso e a cama e o pensamento, a escrivaninha e a cadeira. Viveu ali dois anos. Longe. Passou os dias a passear pela floresta observando as flores e os pássaros, a cortar e armazenar a madeira com que se aquecia e cozinhava e a escrever sobre o ponto em que o homem virou à esquerda: as palavras que leio hoje. Walden, de Henry Thoreau, viria a ser publicado em 1854.
A floresta é repetidamente na história o habitat para a simplificação da existência demasiado complexa do ser pensante, mas é a reformulação do ato de viver e a redução do que ele implica que constitui o objeto de reflexão. O que resta é o ser e o abrigo no meio natural. E para abrigo, não se precisa de muito. Thoreau tinha a sua cabana no Massachusetts, Heidegger na floresta negra alemã e Corbusier nas falésias de Roquebrune. Não que estivesse nos meus planos ter, também, e literalmente, uma cabana mas seria louco deixar passar tal oportunidade. Pois bem, que a floresta tropical australiana seja o meu refúgio. Agarrei a oportunidade e foi assim que acabei a mudar-me para a floresta. Carreguei na mochila um estojo com três cadernos, a minha caneta de tinta permanente, dois lápis de grafite, um estojo de aguarelas de viagem Windsor e uma recarga de tinta Monteblanc. Passaram três semanas desde que aqui cheguei.
A vista do limite da floresta de Tarwin River
para os campos de pasto a Oeste ao pôr-do-sol.
No sul da Austrália, mas não no estado do sul, fica uma extensa área de terras chuvosas conhecidas como Gippsland. Não que seja terra de ciganos (gipsys) mas sim de George Gipps: político e governador do estado vizinho na mesma altura em que o jovem acima se mudava para o lago. É tudo o que sei. Tive a oportunidade há uns dias de folhear um livro sobre a história local*, de um autor e vizinho, que num discurso bem estruturado, conta a história dos seus ascendentes britânicos, a sua viagem até à ilha e o assentamento. Narra a história de vidas difíceis, chegados à Austrália com a esperança de riqueza e guiados a Gippsland pela água em fartura, inexistente nas terras do ouro, a norte de Melbourne. A água, pelos vistos, pesa mais do que contamos. E aqui, a água tratou de construir as suas próprias defesas. A humidade abundante fez brotar dos solos uma legião de arbóreos rijos, comandados por grandes eucaliptos de trinta metros de altura. A floresta densa, quase impenetrável, resistiu o máximo que pode mas a conclusão da linha ferroviária entre Melbourne e Port Albert antes do virar de 1900 acelerou o seu declínio, declarado com o desembarcar de maquinaria sucessivamente mais potente e vacas cada vez mais esfomeadas.
Não consigo dizer muito sobre a composição do território pois da sua vastidão apenas vi uma pequena parte. Na viagem desde Melbourne vi a paisagem verde virar amarela. As fileiras infinitas de vinhas repletas de uvas ainda verdes da baía de Mornington deram lugar a tapetes de erva seca, alta, amarela e espezinhada, em breve devorada por milhares de bovinos negros em circulação mecânica.
Com seis semanas de estadia anunciada apresentei-me como voluntário num dos poucos refúgios de floresta tropical nativa que ainda restam na cordilheira das Strzelecki, um dos poucos sítios sem vacas à vista. A propriedade de 300 hectares de terreno acidentado e contínuo sobe e desde, apresenta, somente, duas áreas de terreno plano e desobstruído. Na principal, encontra-se o centro de operações: uma casa construída por madeira e dois grandes alpendres. Ali, vivem os proprietários e fundadores do projeto de proteção e conservação: romanticos. Na segunda, uns 200 metros mais abaixo na encosta, embrenhada na massa de árvores, um vazio de arbustos rasteiros determina o único espaço de acampamento.
Confrontado com a decisão, ou melhor com a possibilidade de escolher, bem rápido escolhi assentar raízes entre as árvores lá em baixo, afinal, era esta a única opção plausível. Talvez tivesse sido pertinente percorrer de antemão o caminho entre a casa e o acampamento mas tal não me ocorreu. Desde então, todas as manhãs, subo a encosta acentuada praguejando como um velho direcionando interjeições mesquinhas à cartografia por fazer parecer tudo mais fácil. Ainda assim, não há espaço para arrependimentos. Se há virtude na ignorância é esta, que nos muna da ingenuidade necessária para tomar decisões sem que o desconforto ou esforço sejam contabilizados. E nos empurre de cabeça para o azul da aventura seja ela voluntariado, uma viagem ou qualquer outro caminho desconhecido.
No voluntariado, o papel de voluntário é apenas parcialmente altruísta. Pois a verdadeira questão não está no impacto que este pode ter na causa mas sim no efeito que esta pode causar no sujeito. Assim espero. Que me mostre um mundo que nunca vi e que não gosto de ver. Que me puxe do universo fantasia que se cria quando é assegurada a oportunidade e que o colida com a realidade nem sempre colorida do mundo dos adultos. E depois, que me mostre o sol, o calor dos seus raios, e, com ânsia, serei novo.
Passaram três semanas desde que aqui estou. Envolvi-me no jogo político que destrói as nossas florestas. Vi a ignorância e presunção das comunidades humanas face ao planeta que habitam e pensam governar, e todas as espécies, que não sendo vacas, os desafiam. Sei o que significa “madeira certificada e sustentável”. Mas também vi o sol.
Apercebo-me agora que nunca tinha estado em nenhuma verdadeira floresta. Um ecossistema de milhares de anos sem influências humanas, árvores plantadas e limpezas de mato. É algo imensamente assustador. Acho que parte deste sentimento se deve à falta de controlo que tenho sobre ela, e como ela mo mostra todos os dias numa contínua lição de humildade. Os dez centímetros de folhagem seca no chão podem esconder qualquer coisa: a assustadora e assustadiça cobra tigre, uma colónia de 150 mil formigas dolorosas de formigas-touro e, ou, apenas terra. Antes de assentar a rulote, perdi quatro ou cinco horas a limpá-los. Acabei com três grandes montes de folhagem ladeando o acampamento e o chão fazia-se de terra escura e ignorância, deixando construída uma trémida sensação de segurança que ruía a cada barulho desconhecido, não fossemos nós meninos da cidade… Se formos duzentos metros trilho abaixo, as tormentas aumentam e vêm em ponto pequeno. O corpo incha pelos mosquitos gigantes e vê-se drenado pelas sanguessugas que sobem perna acima até encontrar qualquer pequena abertura na indumentária onde morder. Não as sentimos, e o anticoagulante faz-nos sangrar horas depois de as termos arrancado. Mas com isto vive-se bem.
Realmente assustador é o chocalho do vento. O atropelamento involuntário e em cadeia das milhares de folhas das árvores e o tilintar metálico da estrutura efémera que me abriga. A cada rajada, ouvimo-la ao longe e como uma onda sentimos o aproximar de algo incontrolável, da qual esperamos misericórdia. De tal melodia só se pode apreciar a beleza quando não estamos expostos e vulneráveis aos seus efeitos. Quão aconchegante é o som do inverno que ruge lá fora se o que nos separa são valentes paredes de betão. Aqui não é assim. Engana-se quem pensa que os perigos da floresta vêm deste ou daquele animal rastejante e venenoso. Não é assim. Aqui quem mandam são as árvores. Eucaliptos com dezenas de metros de altura, com tamanho e peso suficiente para esmagar centenas de mim, se assim quisessem deixar a verticalidade. A noite é assolada por barulhos de madeira em esforço e grandes fitas de casca grossa a rasgar. Aqui, os ramos caem e um é suficiente. Escolhe-se o sítio de acampamento com base no seu peso, probabilidades e fé, como qualquer outro animal.